Publicado em 09/12/2023 | 545 Impressões |

Renato Senna: O Presente Vivo de Natal

O Presente Vivo de Natal

         Certo dia, início de dezembro, alguém bateu bem cedo na porta da nossa casa. Era um Congregado Mariano, amigo da família, carregando nos braços uma ovelhinha, que, ao ser atendido por meu pai, fora logo lhe perguntando se não a queria para criar. O meu pai titubeou com o súbito presente e nada respondeu. O moço, ante a indecisão do meu pai, de pronto passou a contar o que acontecera com a mãe da borrega. E que ele não ficava com ela porque arrumara um emprego de caixeiro viajante, e, como era solteiro, não havia ninguém para ajudá-lo.

       Dirigindo-se até a sala, ante o olhar hesitante do meu pai, o moço, de nome Clério, descansou a ovelhinha sobre a mesa. Era coisa de seis e meia da manhã. O berro da ovelhinha nos acordara. A gente logo se pôs rapidamente de pé. Em cima da mesa a ovelhinha, trêmula e assustada, escorregava a todo instante, tão frágil era que mal conseguia se firmar de pé.

       Era toda branquinha, apesar de encardida e a lã infestada de carrapichos, mesmo assim ficamos deslumbrados, pois parecia uma bola de algodão. A criançada cercou a mesa. Ainda sem a resposta definitiva do meu pai, logo a chamamos de Nevinha. O moço Clério, vendo a nossa alegria, aproveitando a distração do meu pai, deu uma despedida morna e se foi porta afora. A minha mãe estava no quintal. Ao ouvir o berreiro viera logo saber do que se tratava. Sustentando o seu habitual olhar de censura, ouviu as explicações do meu pai, finalmente disse:

       – Arthur, eu acho que você não tem juízo não..., como a gente vai criar essa bicha?

       – Ora, Marieta, os meninos cuidam dela.

       Vivíamos o mês de novembro. Os preparativos, que antecedem o Natal, ficaram para o segundo plano. O Natal, que sempre nos gerava apreensões, fora esquecido por uns dias. A ovelhinha, a partir daquele momento, passara a ser nossa ocupação e diversão. Acreditávamos que aquela ovelhinha fora um presente enviado pelo Menino Jesus. A partir de então, aquele Natal passara a não ter a mesma importância dos outros. O presépio, que gostávamos de fazer, até fora feito, porém deixado meio esquecido no seu canto.       

        Com os dias, a bicha também passara a berrar mais e mais, apesar de mamar de três em três horas. Ao cair da noite, o meu pai a amarrava nos limites do fundo do quintal; no dia seguinte a gente a empanturrava de soro e leite, mas nada a fazia se calar. As minhas irmãs resolveram dar-lhe banho e a pentear-lhe, mas o pente embaraçava na lã, quando não quebrava. A minha mãe ao ouvir o berreiro, grita aflita donde estava: “Para com isso, meninas!... Ovelha não toma banho não e nem se penteia.”

        O tempo voara, tanto que não percebemos o seu crescimento; a única coisa visível era a fofura da sua lã; que nós, ao montá-la, saíamos em disparada à direção do quintal. Onde ela ficava a espezinhar leiras, pés de pimentas, a mastigar tomateiros, as tenras verduras que brotavam... Nevinha aos poucos mordiscava capim, ramas, pés de mangalô, de buchas e outras plantas que tinham as cercas como apoio.

        A minha mãe pacientemente, sem aliviar o pedalar da máquina de costura, tornava a nos ralhar os excessos.

        – Meninos, meninos! Oh, meu Deus do céu!... Vocês vão escadeirar a pobrezinha.

        As minhas irmãs desistiram do banho, mas não de penteá-la como se fosse uma de suas bonecas; todavia, sempre nas primeiras tentativas, a ovelha refugava e fugia para o quintal, onde se punha a mordiscar a já escassa rama das cercas.

        Ao andarmos pelas ruas, cegamente nos acompanhava. Ao estalar os dedos e assobiar, ela corria ao nosso encontro. Os meninos da Rua de Baixo morriam de inveja, embora tentassem chamar, a ovelha não lhes dava a atenção.

       Com o passar dos meses, já se mostrando esperta e robusta, o meu irmão mais velho resolvera ensiná-la a carregar em seu dorso pequenos volumes. A qual aceitara e aprendera muito bem.

       A partir de então, íamos, eu e meus irmãos, todo sábado para a feira. O peso das compras, divididos de forma equilibrada, ficavam nela que nem bruacas usadas em animal grande. Nevinha, no seu andar dócil, logo encontrava o caminho de casa.

       O dia de feira passou a ser sagrado, tanto que os barraqueiros, ao nos avistar, diziam de lá: “Lá vem os filhos de Seu Arthur com a ovelha”. De barraca em barraca o meu pai comprava mantimentos, pondo-as nos sacos, o seguíamos até o término. Parte, a gente levava na galeota; a outra, que não pesava muito, a ovelha carregava.

       A convivência cria vínculos. Os hábitos, uma vez adquiridos, incorporam-se ao nosso cotidiano. Assim passamos a ver as manias da ovelha como de alguém próximo, feito uma pessoa da casa. O mesmo acontece com as pessoas, os animais parecem imitá-los; contudo, mesmo com vícios e pecados, desde então, jamais conseguiríamos entender a nossa infância sem a ovelha Nevinha.

       No entanto, o excesso de amizade gera atritos, inconveniências, e até ciúmes. A falta de limites é o pior; porque nem sempre são respeitados. 

        Nevinha, a título de brincadeira, extrapolara. Nas suas estripulias, quando não puxava a toalha da mesa, ela mastigava as bordas; igualmente as roupas do varal; escalar móveis e quebrar objetos se tornaram corriqueiro; nas camas, cabriolava; tudo que se interpunha na sua frente como cadeira e gente, ela cabeceava, nem nós éramos poupados.

        Toda quinzena, Congregados Marianos, tendo a frente o padre da paróquia, iam a um encontro religioso em casa de um determinado anfitrião devoto. Eram exaustivas rezas iniciadas ao anoitecer e encerradas tarde da noite. Certo dia os carolas foram recepcionados à marradas de Nevinha. Fato que desgostara o meu pai, por ser ele o dono da casa e também o mais carola de todos.

       Quanto a minha mãe, essa lamentara não terem indo embora depois da marradas, porque, ao término das rezas, ela e a cabocla Quiquinha se viam na obrigação de servir janta para todos. A minha mãe não aceitava muito bem esses encontros religiosos, pois vivia, a reclamar para Quiquinha tamanha carolice. O meu pai, escabreado com o sucedido, pedia-lhes mil desculpas. A ovelha, antes dos próximos encontros, era atada a mangueira do quintal, de onde se punha a berrar.

        Certa noite nós ouvimos nossa mãe falar do seu quarto: “Artur, você tem que dar um jeito na ovelha. A todo instante dá marradas nas crianças, vê se acontece matar uma delas!... Hoje subiu no fogão, amanhã vai trepar no telhado”, meio contrariada, sussurrava a dona Marieta.

        O Seu Arthur pigarreou, fazendo de surdo. Indiferença que nos trouxera paz de espírito. 

       Volta e meia nós os pegávamos em eventuais cochichos a traçar o destino de Nevinha. Desde aquela noite, passamos a espreitá-los atrás de portas e paredes.

       O tempo passou, sem percebermos, a natureza começou a se manifestar na ovelha. Um berreiro lamentoso, ininterrupto, atravessava dias e noites. No quintal, esticava o foucinho, cheirava o ar a procura dalguma coisa. Nevinha se tornou arredia, não mais respondendo aos nossos apelos. O que nos deixara intranquilos.

       – Nevinha não atende mais a gente não, mãe... Ela não quer mais brincar com nós. 

       A ovelha se esquecera totalmente de nós; com isso vieram às fugas a se tornarem habituais. A cada escapada, a iminência de ser apanhada era tida como certa. O meu pai, temendo o pior, tomava o rumo do Mercado Municipal. Ali espiava as bancas dos açougueiros e conversava com amigos; mas nem pista da ovelha. Aborrecido e preocupado, retornava para casa. Quando menos se esperava, alguém conhecido batia-nos à porta: vira a ovelha pastando placidamente nas margens do rio.

       O meu irmão mais velho ia buscá-la, trazendo-a encabrestada.

       Cotidianamente passamos a amarrá-la à mangueira do quintal. Dias depois se acalmava e as manhas aos poucos iam desaparecendo, as brincadeiras recomeçavam, a felicidade voltava a reinar.

        Mas a conversa sobre o destino da ovelha, antes ao pé de orelha, se tornara assunto explícito entre meus pais.

        – A ovelha acabou o cio, Marieta, e os meninos voltaram a brincar como antes. Eu tava pensando... A gente devia cruzar Nevinha da próxima vez. O que você acha?

        – Eu não acho nada, Artur. Lá vem você com suas ideias... É melhor nem pensar. Uma ovelha dá trabalho, imagina mais uma, e quem lá sabe se não vão nascer duas!? Tá maluco!... Já pensou na dor de cabeça que esses bichos vão dar com toda essa meninada. Ademais não temos nem pasto pra ela. Já imaginou se nascer dois borregos, onde vamos prendê-los?... Me diga Artur, onde?

        A minha mãe era duma praticidade despachada. Qualquer coisa que a afligisse, fazia um ruído estranho com a língua, saindo da sua boca sons imprecisos. Isso era muito dela, próprio dela, para em seguida os olhos miúdos fuzilarem, reprovando. Em seguida, dava as costas, ou senão mergulhava na costura de encarregação. No pedalar incessante, o silêncio era quebrado vez ou outra por uma falação espremida: a conversar consigo mediante qualquer embaraço. Alguém acaso perguntasse por que falava tanto sozinha, na bucha ela retrucava azeda: “Mania de meu pai, puxei a ele”, para em seguida se calar sem mais explicações

  

O Desaparecimento de Nevinha

         A nossa vida continuava mansa, sem sobressaltos. Os dias, conduzidos por princípios simples, de cotidiano calmo, eram aproveitados de forma que parecesse ser os últimos da nossa breve existência. Nos fins de tarde soprava uma brisa benevolente até o anoitecer.

        A placidez das águas do Catolezinho era um apelo aos moradores pobres da cidade. Onde as lavadeiras esfregavam suas roupas, batendo-as com vigor nos lajedos; mocinhas com latas dágua na cabeça, as quais, num frenesi subiam e desciam ladeiras para abastecer a casa das patroas; outras tantas nas margens areando pratos, panelas, canecas e talheres, que de tão polidos cintilavam sob o ardente sol da manhã; enquanto isso mães esfregavam a criançada como a querer arrancar-lhes o couro, a tirar-lhes o grude que lhes era já uma segunda pele.

        As margens andavam cheias de meninos às cambalhotas; os mais exibidos pulando de altos barrancos. Mais abaixo, na curva do rio, mulheres protegidas pela farta folhagem dum pé de ingá, higienizavam-se ruidosas, as fuxicadas.

        O calor dos dias de verão exercia nos habitantes de nossa prosaica cidade uma atração irresistível.

        Assim estendiam-se as manhãs, langorosas e alegres.

        As férias escolares corriam como se nunca tivesse acontecido; não percebíamos o tempo de tão envolvidos. Voltávamos na hora do almoço tisnados pelo sol intenso, vermelhos que nem peru. Os mergulhos no rio abriam-nos o apetite surpreendemente, de modo que minha mãe achava graça. “Se botar pau e pedra na mesa não sobra nada,”, ao dizer isto, ela encerrava com o costumeiro sinal da cruz, agradecendo a Deus por termos saúde.

        Embora muito econômica, minha mãe gostava da boa e farta mesa. Não admitia nunca sobras no pranto. E para que nunca faltasse o alimento, os sagrados pãezinhos de santo Antonio estavam sempre dentro do caixão de farinha, que de tanto ser roído por nós, diminuíam misteriosamente.

        Um dia, porém, o excesso de fartura intrigou a gente: uma abundância de carne ensopada como nunca tivemos. Era todo santo dia. Abastança que se estendera por um mês.

        Coincidência ou não, três dias antes do início de tanta fartura, Nevinha desaparecera. O meu pai, por meio de embaraçosas explicações, dizia-nos que fora emprestada para namorar na Fazenda Onça, de Seu Olegário, nos limites da cidade. Assim, aguardamos o retorno da nossa amiga com a sua cria.

        Os dias, as semanas e os meses andavam morosos, e nada de Nevinha! Quando perguntávamos ao nosso pai, a resposta era que estava ainda na fazenda do amigo Olegário; mas vendo a nossa insistência, afagava-nos: “Não se preocupem, ela tá bem de saúde; só que ainda não pariu”, satisfeitos com a explicação, a aguardávamos inda mais cheio de saudades.        

        A esperança fora se diluindo com o tempo. As suas justificativas eram sempre as mesmas; fora aí que começamos a duvidar, pois começaram cheirar a meias verdades.

        Quatro meses depois, e nada da ovelha!

        A ovelha Nevinha fora se tornando em nossa mente apenas uma tênue e cristalina recordação. A imagem dela sobre a mesa, trêmula, assustada e indefesa; apenas essa viva lembrança permanecera entre nós. Nevinha fora o melhor presente de Natal. Único presente vivo que tivemos em nossa infância.

Beira do Rio, Tremedal, março de 2015.

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