Publicado em 21/10/2023 | 626 Impressões |
Sob o Peso do Fracasso
O marceneiro Godofredo***, o Gôda, ao descerrar a sua acanhada marcenaria, avistou de viés algo no chão, abaixou-se, logo comprovou ser um envelope, examinou atentamente frente e verso, e repara que nome e endereço estavam corretos – era para ele mesmo. Meio desconfiado, abriu-o com o canivete e se ateve nas letras graúdas do título: “CURSO DE DETETIVE POR CORRESPONDÊNCIA” – meio vacilante, passou a ler o resto: “Seja um Detetive Particular em apenas seis meses”, ainda não se sentindo confortável, sentou-se no banco de marceneiro e continuou a leitura. Agora em voz alta:
“Nosso curso compõe de material ilustrativo, apostilas e equipamentos de espionagem adotados pelos melhores detetives dos Estados Unidos, Europa e Rússia. No fim do curso, o aluno estará à altura dos profissionais mais qualificados do secreto mundo dos espiões, sem dever nada as melhores agencias de investigação do planeta.
Desprezando o resto, exclamou admirado:
― Puxa vida! Como foi que descobriram meu nome e endereço?... E como souberam que eu queria fazer esse curso?
Godofredo*** ficou um tempão observando o texto e as fotos do folder, folheto ilustrativo, e consigo refletia absorto: “É compreensível, é compreensível... Afinal, são espiões, eles sabem de tudo”.
Do embornal tirou o quente-frio, tomou um gole de café, e fazendo uso do formão, ali mesmo, sobre uma tabuinha de seu uso, picou o fumo, e com as mãos em movimentos circulares o foi desfiando, sem, contudo, despregar os olhos do folder, aberto sobre o banco, com o chamativo título, “CURSO DE DETETIVE POR CORRESPONDÊNCIA”; em seguida, pegou o papel que lhe pendia do lábio inferior, fechou o cigarro com habilidade.
Após uma tragada gostosa, dirigiu-se ao banheiro com o folder debaixo do sovaco. Concentrado, leu e releu o conteúdo, levantou-se da privada ansioso, indo se acomodar de novo no banco de marceneiro. O resto do dia não conseguiu dar uma martelada sequer. Então fechou mais cedo e foi para a venda de Zé Piaba – afinal a notícia merecia ser comemorada. Na venda avistou Agripino, com quem bebeu uns rabos-de-galo, também com quem compartilhou as boas novas.
No embalo, noticiou-lhe:
― Veja só, Gripa – disse em bom tom para que todos os fregueses escutassem. Radiante, abriu o envelope. – Tu se lembra quando comentei sobre o meu sonho de um dia ser detetive? Pois é, este dia chegou, o meu futuro é ser mesmo detetive... Adeus vida de marceneiro!
Godofredo***, Gôda, para os conhecidos, morava numa casinha de quarto, sala e banheiro, nos fundos duma residência, pela qual pagava um módico aluguel. As refeições, às vezes ele cozinhava, noutras vezes a filha da dona da casa, por quem nutria uma oculta simpatia, passava-lhe às escondidas um prato-feito.
Os bens da sua morada eram duma modéstia explicável, porque Gôda era solteiro. Aos 31 anos, os móveis, herança de família, resumiam-se a uma cama, um baú, usado como guarda-roupas, uma penteadeira com um grande espelho emoldurado, um sanfonado cabide de parede e uma marquesa de lastro com encosto de palhinha; no canto, do lado da porta da sala, a mesa ladeada por duas cadeiras; e no chão, sob a janela do oitão, o fogareiro a carvão.
No quarto e nas paredes estavam fotos de agentes secretos, entre tantos um se destacava: o de Sean Connery, o primeiro James Bond, o 007, que o amigo Agripino surrupiara dum cartaz que ficava na porta do Cine Eldorado. Em suma, uma variedade de secretas de ordem duvidosa e desconhecida. Gôda envaidecia-se todo quando alguém dizia ter ele jeito de detetive.
Afogueados pelos rabos-de-galo, trôpegos, desceram a rua principal; logo se postaram frente às casas onde moravam e, cheios de rapapés, um ficava mandando o outro entrar primeiro. Agripino era um moreno cabo verde, amigo de Gôda desde criança, por quem tinha uma respeitável consideração. Nunca discordavam, eram duma cumplicidade ingênua e compreensível – os dois representavam o que havia de mais humano numa cidade de dez mil almas.
Na manhã seguinte, Gôda preencheu o formulário com seus dados. Após checar cuidadosamente tudo, dirigiu-se à agência dos Correios e Telégrafos.
As encomendas de móveis o absorveram tanto que por dias chegou a esquecer do curso de detetive.
O correio naquela época andava a passos de tartaruga. O indivíduo aguardava por meses uma simples correspondência ou quase um semestre de angústia para receber um pacote. Isto é, quando chegava. Dinheiro remetido por carta sumia misteriosamente, sem deixar rastro. Os carteiros não eram lá muitos sérios. Enfim, o correio não era confiável, mas como a correspondência que Gôda esperava não continha dinheiro, certo dia o carteiro bateu à sua porta e...
― O senhor se chama Godofredo***... Seu Gôda? – o marceneiro ante tal pergunta, disse que sim, porém respondera distraidamente longe. O carteiro estendeu-lhe um envelope registrado, tarjado de verde-amarelo; em seguida, indicando com o dedo, falou: “Assine aqui nesta lista, senhor Godofredo Cabral!”
― Detetive Gôda, carteiro Orlando, por gentileza – emendou cortesmente o marceneiro, que já o conhecia.
Mesmo morrendo de curiosidade, ele não abriu o envelope.
Isto já era quatro da tarde. Gôda ficou a dar acabamento num móvel. Quando o sino da Igreja do Seminário badalou quinze para as seis; ele encostou as ferramentas, fechou a marcenaria, e seguiu de imediato para a venda de Zé Piaba.
Toda sexta-feira, depois das seis da tarde, o boteco enchia, e de longe se sentia o cheiro de peixe frito que recendia do fogareiro a carvão. Alguns fregueses bebiam acotovelados no balcão, a besliscar tira-gosto de piaba. Gôda, pulando e gritando, entrou brandindo o envelope feito um louco.
― Chegou, chegou minha gente!... Aqui está a resposta do curso de detetive particular!...
Sem entender, alguns cercaram o desvairado que acabava de entrar, outros ensaiaram uma carreira pensando que era batida da polícia civil; porque ali, vezes ou outras, apareciam pilantras de feitios diversos. Passado o susto, e à vista de todos abriu o envelope. Em detalhes, passou a mostrar cada etapa do curso. “Onde tá o Gripa, Zé Piaba?”, o dono do boteco respondeu que até aquele momento ele não havia aparecido.
Apressadamente, descambou rua abaixo à procura do amigo.
Na segunda-feira, pagou a primeira mensalidade em vale postal; mensalmente, como por milagre, o carteiro passava-lhe a volumosa correspondência; o então detetive, pois já se via um deles, compenetrado, mergulhava de cabeça nas apostilas. Surpreendentemente, meses depois recebeu um pacote maior, no qual continha uma lupa, um binóculo no formato de caneta, uma lanterninha do diâmetro de um polegar e dois radinhos transmissores disfarçados em carteiras de cigarros.
― Que beleza! – disse para o amigo Agripino. – Agora só me falta o distintivo; mas, segundo eles, só vem no final do curso.
Passou o semestre e nada de terminar o curso. No oitavo mês, encerrou as visitas do carteiro, e nada do distintivo. Já no décimo mês, 25 de outubro, Gôda recebeu um pacotinho de papelão, que o abriu sem muito entusiasmo, – pois se sentia falido, já que gastara além de suas posses – dentro havia uma caixinha forrada de veludo; que, para sua surpresa, ali estava a tão preciosa insígnia.
As letras em alto relevo, prateadas, logo lhes saltaram aos olhos o nome de “Detetive Particular”, mais abaixo, o brasão da República. Excitadíssimo, perdeu o sono por dias. À noite desfilava o distintivo como um troféu, à vista de todos, preso no bolso da camisa caqui de mangas compridas. Agora se vendo um verdadeiro detetive.
Mas uma província com dez mil habitantes nada de digno acontecia para um bom detetive. Com a lupa em punho, seguiu pegadas de galinhas, de lagartixas, de gatos, revirou cocô de toda sorte de bichos, observou insetos, indo do micro ao macro; achando-se ridículo e logrado, ficou pensando até em mudar de cidade, se mudar para uma cidade grande como São Paulo. Até que certo dia, pensando na metrópole paulista, disse de si para si com cara de enfado: “Acolá, sim senhor, é que é lugar pra um detetive do meu quilate..., como tem muita gente deve haver muito problema”.
Começou a acreditar que ia morrer marceneiro se não surgisse de fato um caso como “O sumiço do galo do bicheiro Juvenal da Rinha”, assim patente na primeira página do jornaleco local. Soube do desaparecimento do galo enquanto bebia um rabo-de-galo na venda de Zé Piaba. Juvenal da Rinha era morador do bairro, criador de galos de briga e dono da rinha Galo de Ouro, conhecidíssimo entre os apreciadores desse tipo de “esporte”.
― Por que não, detetive! Eis um caso pra ser resolvido, se você encontrar esse galo será bem gratificado, pois o homem é bom de bolso – respeitoso, palpitou o dono da venda.
O detetive vagou o olhar no baldio terreno em frente, que, tomado pelo mato e cercado por dois fios de arame farpados, impediam que pessoas cortassem caminho por ali. Olhava tudo àquilo com certo desalento. Apenas via ordem nas galinhas que ciscavam e protegiam seus pintos no meio da vegetação e no galo de esporão saliente arrastando a asa, avisando aos intrusos que naquele terreiro quem cantava de galo era ele; a um extremo do terreno um porco solitário fuçava o monturo, sacudindo o rabo, satisfeitíssimo da vida.
Gôda deteve-se perdido por instantes, na alma entrava-lhe um desânimo brutal, e voltou a dizer consigo mesmo, à meia voz: “Como encontrar um galo, mesmo de raça, nos quintais e ruas do bairro entre milhares de penosas?”
Curvado sob o peso do abatimento, sacudiu a cabeça, desviou o olhar candidamente e falou pra o dono da venda: “Mas Zé, eu fiz um curso de meses pra quê? Não foi pra correr atrás de um pé-rapado ladrão de galinhas... É vergonhoso demais! E nós sabemos que roubar frango e matar gato do vizinho pra comer com pinga é normal por aqui”.
― Eu sei, detetive, eu sei – concordou, compreensivamente o Zé Piaba.
Seguidamente Zé Piaba ressaltou as qualidades do curso que o amigo fizera e, sem querer ofendê-lo, observou que todo iniciante tinha que se sujeitar a pequenos casos antes de se tornar um profissional. O detetive disse-lhe que ia pensar; como passava de meio-dia foi almoçar.
“(...)... pois o homem é bom de bolso... todo iniciante tinha que se sujeitar a pequenos casos...”. Levantou no dia seguinte martelando na cabeça o que dissera Zé Piaba.
Foi à tarde a rinha Galo de Ouro, conversou e se informou detalhadamente das características do galo desaparecido. Atentou detidamente para todos os galos da rinha em suas devidas acomodações. “Como são parecidos”, comentou consigo, acabrunhado. Mesmo assim, colheu dados, do palpável ao insignificante, do concreto ao abstrato; à noite, passou a freqüentar botecos suspeitos, de ponta de rua à casas de prostituição, locais onde se podia saber de quase tudo, menos de galos, mas era um começo.
Seguiu pistas falsas de pequenos criadores, perdeu-se no mundo dos galináceos e quando deu por si era um mestre em animais de penas. Para, enfim, concluir, meio catedrático e satisfeito. Então, disse de si para si: “É, nem todos os galos são iguais, existem diferenças sim”.
Uma semana de buscas, mas nada do tal galo!
Concentrou esforços nos botecos ainda mais afastados e ermos. Não achando pista do bicho, retornou desanimado ao ponto de partida e empacou no meio da investigação.
Tão envolvido estava no caso que até se esquecera da marcenaria. Descobrir quem roubou o galo passou a ser uma obsessão. Agripino, nesse meio tempo sumira do bairro; disseram-lhe que estava no vilarejo de Iguá, na roça de um tio. No dia seguinte, antes do sol raiar, pegou a estrada que dava para o distrito.
O detetive não tirava o caso da mente; assim que chegou ao vilarejo, não encontrando o amigo, ficara a conversar com o tio dele; depois lhe pediu um cavalo emprestado e saiu a vasculhar os terreiros das roças vizinhas. Mas tudo em vão. O ar do campo abriu-lhe o apetite, consultou o sol, já passava do meio-dia, foi para venda onde ele e o amigo Agripino tinham hábito de freqüentar, quando ali iam. Assim que apeou do cavalo, o amigo foi logo interpelando: “E aí, detetive Gôda, alguma pista do galo?” – o detetive respondeu-lhe que nem cheiro do bicho. Então o amigo retrucou: “Se não achou o galo é porque ele está esperando a gente pra ser morto e comido no ensopado de quiabo”.
― O que?... O que tá dizendo, homem!?... Como é que é Agripino?
― É isso mesmo, detetive. O galo tá esperando a gente... Não te contei porque em primeiro lugar não te vi e segundo não sabia que você tava atrás do bicho. Aliás, vim saber quando passei em casa e o tio acabou de me contar.
― Tu tá brincando, Agripino! O galo vale uma grana e o dono é Juvenal da rinha Galo de Ouro, e com dinheiro da gratificação a gente pode comprar dúzias de frangos pra comer... Por que não me disseste antes, Agripino!
– Éééé.... eu sei que vale uma grana – atalhou mansamente, como era de seu costume. – Enquanto isso vamos tomar uma, e logo, logo, te explico.
Ao pé do balcão, Agripino deu início de como tudo começara; por fim encerrou contrariado:
― O desgraçado do galo de Juvenal invadiu meu quintal e matou três dos meus melhores frangos, por isso passei a mão no cujo e vim pra o Iguá. Mas antes, na venda de Zé Piaba, escutei comentários que o Juvenal da Rinha ofereceu um dinheirão pra quem pegasse o ladrão, e o pior, chegara até desconfiar de mim, por eu morar perto da rinha, mas só desconfiam... Agora não tem remédio, só volto quando assentar a poeira.
Agripino, finalmente dissera que roubou o galo por vingança, pois fora reclamar para os filhos de Juvenal e eles o sacanearam dizendo-lhe: “Despena os frangos e coma; tu tá reclamando de quê... ah, ah, ah... o galo de painho te poupou o trabalho de você matar os bichos”, – assim jogaram na sua cara. “Aí eu fiquei brabo, mas calado, entonce passou uns dias, e eu ali na cutia esperando o brigão entrar de novo no quintal, assim que passou a cerca... eu zás, botei ele num saco, mas antes deixei o bruto cobrir várias galinhas minhas, depois eu trouxe pra cá”.
O detetive Gôda deu o caso por encerrado e a investigação acabou na mesa, entre pratos e talheres. Tempos depois, o detetive virou notícia nas páginas policiais por questões e motivos obscuros.
Este caso é real. Aconteceu com um amigo meu, que já se fora. Isto, em 1967.
Beira do Rio, Tremedal, agosto de 2017.
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