Publicado em 17/02/2023 | 131 Impressões |

Renato Senna: A Pendenga e o Legado

A Pendenga e o Legado

 

        Animosidade entre vizinhos é mais corriqueiro do que se imagina, e quando se manifesta independe do grau de parentesco ou de amizade. O mais banal atrito pode ter reações imprevisíveis. A maioria das brigas é mais pelo prazer da desforra; pondo a razão sempre em segundo plano. Qualquer desavença, mesmo momentânea, tanto pode fugir ao controle como pode acabar da mesma forma que começou.

        Na mente dum sujeito presunçoso, uma ocorrência fútil pode ter consequências desastrosas. Numa querela, opinião e capricho pesam mais do que a questão em si, então, para um indivíduo pretensioso, admitir o próprio erro é o mesmo que mostrar fraqueza.

        Bem, a realidade é que nem sempre temos uma explicação plausível para tais condutas. Espero então, como forma de ilustrar este raciocínio, não ter volteado tanto para um caso tão simples. Então veremos a seguir o que de fato aconteceu com dois vizinhos deveras interessantes, mas que também pode ocorrer entre parentes próximos, até mesmo entre familiares. No entanto, ao narrar, não vou me ater a preceitos éticos, que foge aos espíritos vulgares, mas sim aos princípios básicos que regem a vida.

        Uma vez que os dois personagens estão mortos, podemos contar o que se passou sem muita vergonha ou subterfúgio: um deles se chamava João Santos e o outro Joaquim da Silveira. A fazenda de João Santos distanciava-se dois quilômetros do sítio de Joaquim da Silveira. A lonjura tornava-se ainda maior devido à população vasqueira que ali habitava.

        O presunçoso João Santos se considerava o maior criador de jumentos pêga da região e também de cavalos manga-larga marchador. Já o Joaquim da Silveira, conhecido por Quincas, era singelamente voltado ao cultivo da terra. A familia de Quincas possuía uma boa roça de mandioca brava, também havia um excelente aipim de mesa, onde colhia uma boa batata doce e um delicioso inhame. Enfim, o sítio os mantinha. Tanto que parte do que colhiam era levado para vender na cidade. Mas o que mais o orgulhava era o seu pomar, pois nele havia variados tipos de frutas.

        Na várzea do seu sítio, o capim crescia verde e viçoso, o qual, no estio alugava para os amigos. E para reforçar o orçamento, criavam pequenos animais domésticos; da sua terra também saía goma, biscoitos e outros derivados, ainda uma excelente farinha, que era muito apreciada. Semanalmente, todos esses produtos eram puxados pela égua Ruça. Uma égua que nunca o decepcionou como animal de montaria e tração.

         Quanto ao João Santos, assim que alguém o visitava, tomava-o pelo braço, a caminho do haras ele passava a gabar o seu plantel. A cada animal, ele passava a discorrer as suas características; começava pelo formato da cabeça e avançava na musculatura: “Olha para aquele lá, aquele pêga acinzentado, o orelhudo... olha só que conjunto! Veja só o contorno do peitoral” – assim dizia morrendo em elogios às curvas das ancas, à curvatura do dorso, da cabeça, até a ponta do rabo de cada um deles; nas genealogias, derretia-se, afundava-se na presunção do conhecimento e morria de afeição nas qualidades.

        Para finalizar, voltava ele ao pisar do animal, a maciez do trote e sem o mínimo de modéstia dizia orgulhoso que seus reprodutores eram os melhores, os mais solicitados pelos fazendeiros do lugar, da região e até mesmo de outros estados. “Veja aquela lá, aquela a égua castanha, que bela fêmea, que personalidade! ”. Embora o visitante não sabendo diferenciar um gato duma lebre; ali estava, no entanto, o João Santos a lhe dar aulas de anatomia animal.

        Vemos portanto que, afora o amor e o ciúme aos seus animais, a ostentação e a vaidade eram características bem acentuadas no caráter de João Santos. A prova disso é que, por apego e ciúme, segundo ele, jamais um seu reprodutor saiu dos limites da sua fazenda para cobrir fêmea de baixa qualidade. Todos os seus animais possuíam origem e boa linhagem. E para que houvesse valor de compra e venda, a fêmea teria que ter também pedigree para que compensasse a prenhez. Assim gostava de apregoar o senhor João Santos aos quatro ventos.

         O jumento Ventoso, entre os seus congêneres, era visto por João Santos como o seu melhor reprodutor, – sugestivo nome que definia muito bem a sua personalidade, pois vivia no cercado zurrando sempre insatisfeito. O Ventoso era um reprodutor de grande importância. Quando solicitado, meticuloso e sistemático, ele antes ia avaliar o animal a ser coberto. Assim fora com o Ermelino do Olho d’Água para um possível cruzamento do Ventoso com uma de suas éguas, todas de boa procedência. Como vemos, toda cobertura tinha que ser avaliada pelo seu olho exigente.

       Por coincidência, tudo ocorreu quando o João Santos se dirigira a Fazenda Olho d’Água; por sua vez, o agricultor Quincas também fora visitar um parente que estava enfermo numa cama. Quanto aos seus familiares, estes foram trabalhar na roça.

       O reprodutor Ventoso, como a adivinhar a ausência de ambos, sentiu na brisa da manhã um odor de fêmea no cio. Cavoucando o chão e bufando, acabou vencendo a cancela a coiceadas, e desembestado foi parar no sítio de Joaquim da Silveira.

       O Quincas retornara mais cedo. Após uma vistoria geral, achou meio pisoteado o local onde ficava sua égua, deu alguns gritos chamando a patroa, mas ninguém respondeu, uma vez que todos ainda estavam no roçado. Não vendo nada mais que o preocupasse, deu um muxoxo e foi encerrar o dia com algumas obrigações que deixara por fazer. 

       O vizinho João Santos pisou na varanda da sua sede a boquinha da noite. O Ventoso placidamente pastava nas cercanias do curral. Desconfiado e zeloso, como de costume, passou a supervisionar em redor, logo percebendo a cancela aberta e o Ventoso, a meia distância, a pastar; alisou o queixo, que já pedia navalha, e desconfiadíssimo tocou o animal de volta ao curral, depois se recolheu.

       Coisa de cinco meses a barriga da Ruça principiou a crescer. O Quincas pensando ser doença chamou o raizeiro Zé Molambo, curador de gente e animais. O raizeiro, olhou, apalpou, e diagnosticou meio duvidoso: “Sei não, mas acho que sua égua ta é de barriga, tá é prenha”, disse, e foi simbora.  

       O Quincas, por dias, ficou a matutar. A égua mostrava um despotismo de barriga além do normal. Um seu parente, numa visita rápida, se pôs a caçoá-lo dizendo que entendia muito era de mulher, já que tinha cinco filhos, e não de égua, mesmo assim a viu e disse, “essa sua égua tá é enxertada, tá é prenha.” O Quincas, aceitando sem hesitação, se pôs silencioso, mas satisfeito, logo achando o pai ser um cavalo e que dali nasceria um potrinho. As dúvidas acomodadas, ele acabou dando o assunto por encerrado.

        Já com o João Santos acontecia o contrário. Após ouvir boatos de que a égua de Quincas estava de barriga, ele foi ter com o vizinho. Encontrando-o na varanda, deu-lhe uma boa tarde de cara fechada e, sem afetação, foi direto ao assunto: “Seu Quincas, eu tenho quase certeza que meu reprodutor Ventoso cobriu sua égua... Então, Seu Quincas, se nascer burro, ou mula, o pai é o meu jumento, e o senhor vai ter que pagar pela cobertura, que é cara..., se o senhor não puder pagar, a cria é minha. ” O criador João Santos, muitíssimo orgulhoso, porém, mais chateado ainda com o ocorrido, passou a ofender o animal do Seu Quincas, dizendo-lhe que nenhum animal de seu plantel jamais cobrira fêmea de raça inferior.

        – Não ofenda minha égua não, Seu João. A Ruça tem muitas qualidades e eu não mandei seu animal pular a cerca e vir aqui enxertar a minha égua; não contratei o seu serviço, isto é, o serviço desse seu jegue pê..., pêga..., desse seu reprodutor tarado, não me importa como o senhor chama lá esse bicho... aliás, o senhor não tem certeza, e ter quase certeza não é a mesma coisa que ter certeza. Se o seu jegue cobriu, ou meteu, na minha égua Ruça, estou pouco ligando, para mim não faz nenhuma diferença; se o seu jegue veio aqui e brincou com nela, se é de raça ou não, também estou pouco ligando; pra mim, o seu jegue orelhudo é como um jegue qualquer, apenas um pouco maior e ser orelhudo feito o Caipora.

       – Em primeiro lugar, Seu Quincas, eu não crio jegue, jegue é animal inferior, de gente pobre, sem critério ou origem. Eu crio jumento pêga, de raça registrada, com pedigree. Ofendido, o fazendeiro criador deu uma aula de genealogia animal ao sitiante Quincas, que nele entrou por um ouvido e saiu no outro, pouco se importou com tanta importância e asneiras ditas a respeito dum jegue.

        O papo se estendeu por quase uma hora. O João Santos finalmente disse que o pai era o Ventoso, porque o tempo de cobertura coincide com a visita dele à fazenda de Ermelino do Olho Dágua, e também acrescentou que alguém tinha visto o Ventoso nas proximidades do seu sítio.          

       – Então, Seu Quincas, se a cobertura fosse feita por cavalo a sua égua já teria parido, e ela ainda não pariu.  Então foi o Ventoso que cobriu a sua égua, se foi ele, ela então vai parir mais tarde, uns dias depois.

        O Quincas achou tudo muito lógico, por fim acrescentou mais uma vez que foi o jumento dele que procurou a sua égua.

        – Se o senhor pensa assim, vamos aguardar o nascimento do bicho, Seu Quincas! – Categórico, finalizou o dono do jumento.

        Ao sair, o João Santos olhou-o de frente, expressivo e desafiador, desamassou a copa do chapéu, montou e esporeou o vazio da mula, que num rompante partiu macia estrada afora num trote de cão.  

        Dentro dos dias esperados, a égua de Quincas pariu um burrinho esperto e saltitante; caído de amores pelo animal, nem se lembrou do João Santos. Mas o mesmo não se podia falar do dono do Ventoso; que dias depois foi bater direto na porta da sua sede.

        – Bom dia, Seu Quincas, nasceu ou não nasceu burro?

        – Que nasceu, nasceu, Seu João... Mas, e daí? – Atalhou o Quincas incomodado.

        – E daí?!... Ué, então o dono sou eu, porque o Ventoso é o pai.

        – Mas a mãe é minha! – Respondeu na bucha, o dono da égua.

        – Isso é o que veremos Seu Quincas. Como eu disse dias atrás: se nascer burro, macho, ou mula, fêmea, seria meu do mesmo jeito, porque o reprodutor é meu e o senhor não pagou pela cobertura.

         – Não paguei e não pago! Quem é o dono da égua e do meu sítio sou eu, Seu João. Eu não mandei o seu jegue fugir e meter na minha égua..., mandei?... Então não lhe dou um tostão, tampouco o Pelado!... Como o senhor acabou de ouvir, ele já tem até nome.

         O João Santos assuou com tanta violência que o nariz ficou rubicundo feito um peru, em seguida amassou o lenço e o enfiou na algibeira da calça. Sem dar um pio, subiu na mula esquipadeira, fez meia volta e tocou para a cidade. Onde deu queixa na delegacia.

       Dias depois, os dois estavam frente a frente com o delegado. Que logo inquiriu:

         – Joaquim da Silveira, o Quincas, o senhor é vizinho de Seu João Santos, não é?... Bem, Seu Quincas, que história é essa de vivente sem pai?... Me explica tudo de-ta-lha-da-men-te.

        O Quincas muito aborrecido com a baixeza do vizinho, sentindo-se pouco à vontade na delegacia, foi logo se abrindo em esclarecimentos.

        – É o seguinte, seu doutor Delegado, eu não sou culpado por ter o jegue dele escapado do curral, invadido a minha propriedade e enxertado a minha égua; não posso entonce pagar por uma coisa que não pedi. Quando a égua Ruça pariu, ele se acha agora no direito de ser o dono do burrinho, Seu doutor Delegado... O Senhor acha que ele tá certo?

         O delegado pressionou os dedos na mesa, mexeu-se desconfortavelmente na cadeira, e deu um suspiro longo, pesado, e visivelmente confuso pediu mais esclarecimentos a ambos... depois disse:

         – Tá danado senhores, tá danado...! Nunca vi um caso tão complicado como esse em toda minha vida de delegado... olha que tou na polícia há dezoito anos!

        O João Santos interrompeu o pensativo delegado:

         – Veja bem, doutor, vamos supor: o senhor tem um filho homem, ele vai e engravida a filha do vizinho. Por direito, doutor, o filho macho fica com o pai, isto é, com o senhor, não é? Assim manda a Lei. Raciocinou o dono do Ventoso aplicando a lei dos homens na questão.

         – A Lei diz que o filho é dos dois, dos genitores, Seu João Santos. Portanto não misture animal com gente. Nós temos que arranjar uma solução dentro do reino animal.

         O delegado, tentando achar uma solução, enveredou pela lei da natureza com exemplos lógicos e práticos, finalmente apelou filosoficamente para o bom senso dos dois.

        Mas os donos dos animais rechaçaram o pragmatismo do delegado, e a discussão entre ambos recomeçou.

        Sentindo-se impotente, o delegado deu um soco na mesa para impor respeito ao recinto. O silêncio voltou a vigorar até que o Quincas medrosamente pediu licença ao delegado e levantou uma nova hipótese.

         – Quero fazer outra suposição, seu doutor Delegado. Mas não se ofenda não, pois é só uma hipótese; vamos então supor, doutor Delegado, vamos apenas supor que o senhor é a égua e eu o jegue... e meu dono é o vizinho que tá aqui.

        O João Santos tentou mais uma vez corrigir que seu animal não era um jegue, mas, sim, um jumento pêga; contanto o delegado o interrompeu com um gesto para que o Joaquim da Silveira concluísse o raciocínio. O Quincas respirou fundo e tornou ao assunto: 

        – Eu pego o senhor, que é a égua, e monto, com o tempo nasce a cria; mas lembre-se que o senhor é a égua, que quietinha tava no seu canto, e eu o jegue fujão, o jegue que pulou a cerca e cobriu o senhor, isto é, a égua; como sabemos, Seu doutor Delegado, nasceu o burrinho. Aí pergunto ao doutor: o dono do burrinho não é o proprietário da égua?

        Entre atônito e ofendido, o delegado deu um pulo e esbravejou:

        – Seu Quincas, eu não pari nada! Me respeite, Seu Quincas! Quem pariu o burro foi a sua mãe... vai o senhor pra puta que te pariu!

        – Se foi a minha mãe a puta que me pariu, seu doutor Delegado... se foi a minha mãe que me pariu, o burrinho entonce é meu irmão... Estou de pleno acordo com o senhor. O burrinho então continua sendo meu por fazer parte da família. Concordo com o senhor, seu doutor Delegado... Estou de acordo!

         O delegado transtornado e ainda mais confuso com a comparação enviesada, logo encerrou a questão e deu o caso por arquivado.

         – Esse maldito burro é do senhor Joaquim da Silveira! O caso tá encerrado! Agora se retirem os dois daqui..., agora, já! Essa pendenga estúpida vai acabar na boca do povo... E vai me desmoralizar!

         Realmente, o delegado tinha razão. O escrivão, que gostava de uns tragos, esparramou o caso. O delegado virou chacota. Na cidadezinha, e região, o delegado passou a ser chamado pelo apelido de “Égua Parideira”.

 

Beira-Rio, Tremedal, março de 2013.

 

PS

Este caso ocorreu de fato no Estado da Paraíba; fora-me contado pelo advogado Francisco Cassimiro, que viveu e advogou por anos em Vitória da Conquista - Bahia.

 *Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas, fatos e situações reais terá sido mera coincidência. 

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